O Portal

Mariusz Lewandowski - From archives - ESSENCE OF EXISTENCE, 70x60 cm (2012)

Destranquei a porta e abri-a lentamente, nenhum ruído advinha de dentro daquele apartamento, nem mesmo do computador ligado sobre a mesa da sala. Estava tudo escuro quando entrei e Dante não parecia estar por perto, isso me fez pensar que, decerto, ele estaria dormindo; mas, por que dormir àquela hora se, há meia hora enviara-me uma mensagem tão incomum? Havia uma atmosfera estranha ali que eu não quis aceitar como real, eu definitivamente não sinto medo e não tenho sensações como aquela; não ter medos não significa que sou superior ou evoluída, é o meu cansaço que faz tudo parecer insuficientemente surpreendente ou assustador. No entanto a sensação estava ali e aquela atmosfera não poderia ser tão somente um pormenor irrelevante, ela ascendia significativamente conforme eu me aproximava do computador onde eu teria acesso a visão completa dos dois corredores, à direita e à esquerda, que levava aos demais cômodos. Era como uma presença imersiva. Hesitei. Tudo continuava em um silêncio obscuro. “Dan?” ― proferi, mas nenhuma resposta encontrou-me. “Dan?” ― novamente o nada. À janela à frente denunciava a chuva e na tela do computador havia uma página aberta com algo escrito. Curvei-me ligeiramente e li.

Era uma página de notícias, um trecho selecionado se destacava aos meus olhos. “Os policiais encaminharam Luíza para o centro psiquiátrico de Nortos, porém durante todo o tempo Luíza estivera sã e até quando entrevistada pelo jornalista Caesar Soares do jornal da manhã, manteve-se calma e afirmara várias vezes que jamais poderia ferir sua irmã: “Eu sei bem o que eu vi ali, um tipo de fenômeno completamente anormal e monstruoso, eu apenas não consigo descrever aquilo, porque me assombra, mas eu sei muito bem que estou falando a verdade e eu vou, de algum jeito, provar minha inocência”. O corpo de sua Lígia será enterrado amanhã, sua família preferiu não divulgar o local da cerimônia”. Ao lado, na mesa, uma vela e um livro. Curvei-me mais um pouco para enxergar o título, curvei-me demais e pela visão paralela eu vi a silhueta no corredor. Tremi e imediatamente retrocedi alguns passos. Meu coração se acelerou como há tempos não fazia. “Dan, você está aí? Me responde, droga!” ― disse ainda mais alto. Nenhum som. “Merda...” ― sussurrei e voltei para a porta com o intuito de ir embora o mais rápido possível. Foi nesse instante que tudo ficou claro, a energia elétrica voltara. Olhei para a sala outra vez, antes de sair do apartamento. Eu o vi, então, e um maldito susto levei, seus olhos eram fundos como um cadáver e seu rosto pálido era agonizante. Meu alarde foi tanto que gritei e levei minhas mãos ao meu peito, sentindo o coração mais que frenético.

― Meu deus, Dante, que porra é essa! ― falei com a voz fraca

― Há alguém do outro lado do espelho ― aquela voz não podia ser a de Dante, era tão baixa e grave, tão tenra e apática.

― O quê? Enlouqueceu? ― Minha postura retomava aos poucos enquanto eu tentava entender tudo aquilo.

― Venha, vou te mostrar ― ele se virou de costas, deu alguns passos.

― Não, Dante, você fumou? Não vou com você, esse lugar está bizarro!

― Está bizarro por causa do espelho... ― ele me olhou outra vez ― E se eu fosse você eu falava mais baixo, aquela coisa não parece gostar de barulhos.

― Do que você está falando? ― preceituei.

― Vem, Ana, eu preciso que você venha ver! ― expressou num sussurro. Confesso que me preocupei e caminhei com ele, ainda hesitante. Não havia nada no corredor. No quarto de hóspedes o espelho estava coberto por uma manta escura. ― Eu vou tirar a manta, está claro e nada de ruim vai acontecer, eu acho, porque tem luz aqui.

Eu vi o espelho e nele o reflexo era sinistro, tudo o que havia era o mesmo quarto, mas em completa deformidade, coberto com sangue e entranhas. Cada parede suja era negra e cinza, um tipo de musgo arrastava-se na extensão das rachaduras de cada mobília. Enjoei-me com a cena e o cheiro de enxofre que de repente tão forte e tão impossível, trouxera-me vertigens; virei meu rosto para não ver aquilo, nem eu e nem mesmo Dante eram refletidos. Meu coração pulsou mais forte e, completamente atordoada, fiquei sem reação.

― É um portal, Ana, eu olhei lá dentro, minha cabeça atravessou. Eu vi uma coisa lá. Um tipo de ser... não sei explicar.

Eu senti que iria vomitar, meu corpo tremia e eu não era capaz de controlar meu próprio ser. Não podia ser real. Dante cobriu novamente a entrada infernal. Continuei aturdida.

― Quando está escuro ele sai... caminha devagar e vai até o corredor. Para. Não continua. A luz do computador o impede de passar. Mas ele sabe onde estou, por isso espera... ele está a cada noite mais próximo... ― Lembro-me da silhueta, da sensação persecutória, do silêncio. Começo a suar. Sinto falta de ar e sei que vou colapsar, não consigo dizer nada.

― Ana... me ajude... me ajude, Ana ― Dante se aproxima e começa a me chacoalhar como um insano ― Me ajuda, por favor, me ajuda ― Sussurra como um maníaco. Solto-me de suas mãos agressivas e corro para a saída da casa, ele corre atrás de mim. ― Ana, não! Por favor! Eu preciso de ajuda! ― Abro a porta e tranco-o para dentro do apartamento. Estou ofegante. Ele não bate na porta. Sei que ele tem a chave, mas não a vi no lugar que deveria estar, nem mesmo na porta do lado de dentro quando entrei. ― Ana... por favor... ― ele sussurra, encostado na porta.

― Por que você não vem comigo? Nós podemos apenas ir embora... ― digo, completamente atormentada. Ouço-o respirar.

― Poderíamos..., mas eu o vi... e não posso esquecer... a forma... a carne... os olhos... estão dentro de mim... ele me seguira onde eu for...

― Apenas vamos embora, Dante, você não vai salvar o mundo, aquilo é um portal! ― sussurrei em desespero. Aquilo era um portal?

― Eu sei... eu o abri, Ana... a culpa é minha... ― a voz de Dante se distância.

― Dante? Por que você fez isso? ― indago, mas ele não responde. ― Dante! ― grito. Nada. Abaixo-me para olhar debaixo da porta. A fresta suave de luz se apaga. ― Dante! Não faça isso! Seja o que for que você vá fazer! ― brado outra fez, dando murros na madeira que nos separa. Ouço um som. É o silêncio. Ele está vindo. A atmosfera e a silhueta são vivas na minha mente. Começo a destrancar a porta com uma fugacidade desumana, pois eu sabia, Dante estava pronto para se entregar.

― Dante! Isso não vai resolver os problemas! Me ouve! ― Destranco. Abro-a e está escuro, mas a luz do corredor contagia a escuridão. Era tarde demais. Corro até o quarto de hóspedes e pelo caminho acendo cada uma das luzes. Era tarde demais. A porta do quarto estava fechada, lá dentro estava escuro e eu pude ouvir a sonância de um líquido pingar, e o silêncio espargir, e a carne mastigada, e o cheiro de enxofre tão mais absurdo do que antes. Minhas pernas se abalam, minha garganta torna-se seca e, antes de minha fuga alucinada, um raio atinge algum prédio mais próximo, o estrondo acompanha a chuva densa, abaixo-me assustada e a escuridão retorna por todos os lugares, exceto a luz do computador na sua bateria persistente. Não penso, apenas corro em desespero inenarrável tentando enxergar além das poucas luzes de emergência do corredor. Ouço a porta do quarto de hóspedes se abrir, era absurdo ouvir naquela distância, já no meio do corredor, próxima às escadas. Mas eu ouvi. A coisa estava vindo me encontrar e eu não sei o quão rápido ela seria. Nunca corri tanto em toda a minha vida, e mesmo já fora do prédio eu não parei, eu ouvia e eu sentia o seu cheiro; estava tudo escuro, não havia ninguém por perto, só havia o frio, a chuva e, cada vez mais, aquele ser. Próximo. Respirando. Nutrindo meu tormento.

Cheguei à luz sem fôlego e num quase ataque cardíaco; eu estava em um posto de gasolina, mas não importa o quão iluminado era aquele lugar, a sensação de perseguição predominava e a silhueta vista de soslaio era eternamente repetida de sombra a sombra, canto a canto. Eu queria arrancar meus olhos..., mas do que adiantaria? Era evidente que ele permaneceria próximo, seu cheiro, a sonância de seu silêncio, sua carnificina, tudo era inevitável, tudo estava enraizado... ele já estava dentro de mim.

Sahra Melihssa

Poeta, Escritora e Sonurista, formada em Psicologia Fenomenológica-Existencial e autora dos livros “Sonetos Múrmuros” e “Sete Abismos”. Sahra Melihssa é a Anfitriã do projeto Castelo Drácula e sua literatura é intensa, obscura, sensual e lírica. De estilo clássico, vocábulo ornamental e lapidado, beleza literária lânguida e de essência núrida, a poeta dedica-se à escrita há mais de 20 anos. N’alcova de seu erotismo, explora o frenesi da dor e do prazer, do amor e da melancolia; envolvendo seus leitores em um imersivo, e por vezes sombrio, deleite. A sua arte é o seu pertencente recôndito e, nele, a autora se permite inebriar-se em sua própria, e única, literatura.

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