A Carta de Íris Cohen
Imagem criada por Sahra Melihssa
Escrevo esta carta porque devo explicações aos meus familiares e queridos amigos, já que sumi há anos e, decerto, sou dada como morta por todos aqueles quais amei um dia. Sei que o mundo não é mais como outrora e sei acerca de uma das razões por detrás do horror que acomete o momento; creio que aquilo que vivenciei, e que hei de descrever ― até quando me for possível ―, poderá acrescentar majestosas ― e medonhas ― compreensões a respeito de tudo, inclusive possíveis hipóteses de resolução.
Até hoje não sei o que de fato aconteceu, não a coisa em si, mas o verossímil sentido que a cinge, contudo o que sei ― e tenho uma certeza inegável ― é que desde então sou perturbada, terrivelmente, por meio da paralisia do sono que faz as imagens daqueles instantes confusos e sinistros retornarem ao meu presente infortúnio e, como se ocorressem no exato agora, eu vejo aquele homem obscuro outra vez, observando-me, parado na janela, olhando-me como o seu retrato antigo.
Peço desculpas se meu vocabulário se apresentar exageradamente extenso, é que a ninguém revelei este segredo e o guardo como um íntimo calvário; sinto-me, de fato, aplacada em poder segredar tudo o que sofri e não quero poupar meu léxico para tal, porque sei que isso há de aliviar um pouco esta intimidatória lembrança, de algum jeito, apesar de eu já estar velha e perto da morte.
Tudo aconteceu no ano de dois mil e setenta e três, quando eu já me afastava do convívio social pelo cansaço da existência miserável, pela lassidão solitária que fora, por tantos anos, minha única verdade. Vocês não sabiam e não souberam que me imergi em uma vil consternação e percebi estar curvada à depressão que, tão familiar, se achegava; por esse motivo tomei a decisão de ir embora daquele extenuante e monótono lugar onde passei todos os meus trinta anos de vida e onde a vida era vivida em conjunturas esmigalhadas, ano por ano e, sim, tão assaz frequente era a minha penúria, o meu desalento.
Dei nome às minhas melancolias e, sequer percebi, que se enraizaram como figueiras. Contudo, a desolação que me acometera nem de perto assemelha-se ao que supus estar prestes a vivenciar com o baixo humor contínuo, a fadiga e o isolamento; o horror que me acometera estava há um adeus de distância, o adeus de meu lar amarescente que era ― e eu não sabia ― suficientemente seguro.
Contextualizo-vos que era demasiado raro eu ter um momento de prazer, o vazio sufocava meu cerne e eu estava sempre naqueles cárceres cotidianos ― os quais soavam deveras como um hospício ― e no aproximar das confraternizações de dezembro eu me sentia, em grau superior, a um poço de aversão imutável, porque o perfume de hipocrisia irritava-me mais do que as luzes piscando em cada janela de cada maldita residência. Mas eu não odiava vocês, acreditem, o ódio pertencia apenas a mim, por mim e para mim, refletindo no mundo como um espelho. Esta é, enfim, a razão pela qual realizei a fuga para um espaço na terra desprovido, o quanto fosse possível, de pessoas. Eu sentia que para que o ato de meditar alcançasse o seu cume necessário, era crucial o afastamento, eu precisava refletir em como tomar certas atitudes quais, quiçá, poderiam me dar uma última esperança de vida ― e para tal, a mudança era inevitável.
Em poucas horas, depois de uma lancinante crise existencial, no crepúsculo mundano do dia vinte e três de dezembro, tomei as comuns doses de pessimismo após notar o quão errôneo era imaginar que meus planos seriam dignos de um plausível desfecho de realização plena, tudo isso porque eu estava prestes a ir embora da minha cidade até ser notificada de que o único trem daquela segunda-feira, único e último da semana para lugares distantes da capital, estava indisponível, sequer uma única vaga, por incrível que pareça.
Fiz o possível para que me permitissem entrar, implorei por um lugar, mínimo que fosse, ainda que no apertado núcleo ruidoso dos vagões menos tersos, pois eu não poderia apenas voltar para casa e esvair na agonia daqueles quartos, era meu último saldo de fé. Contudo não havia condescendência. Vi com meus olhos lacrimejantes a partida desesperadora do último trem e fiquei apenas inerte, observando seu vazio deixado na encantadora linha de cobre, desocupada em seus trilhos envelhecidos. Porém, perto de abandonar a estação, visualizei um novo comboio a se aproximar; de imediato açodei até a bilheteria e indaguei o destino do, aparentemente, verdadeiro último trem, mas não souberam me informar, a verdade é que, para eles, tratava-se de algum tipo de trem particular ― isso existe? Eu duvidei, mas observei que em poucos minutos algumas pessoas adentravam-no, entregando, ao que me parecia ser o condutor, bilhetes em um dourado-escuro deveras brilhante. Não hesitei em perscrutar.
O homem era velho, seus olhos fundos estavam distantes, no entanto a sua cordialidade ainda vívida apaziguou-me a ansiedade. Com serena voz dissera-me que o Aecqer ― este era o nome da comitiva ― partiria para Nehen, uma cidade muitíssimo afastada, além das cordilheiras de Ahvalanch. Segundo o ancião, tratava-se de uma cidade pouco conhecida, visitada particularmente por sujeitos de alto poder econômico que, com o objetivo de afastarem-se dos dias festivos, iam para Nehen usufruir dos seus belíssimos e caros chalés. Interessei-me, é evidente, mas desde a passagem até a hospedagem era preciso alguns rins de pagamento. Por sorte, ou não, o bom homem quis fazer a caridade natalina de me permitir ingressar sem bilhete ― já que eu estava em prantos incorpóreos, com a fronte franzina, cabisbaixa, demasiado abatida e profundamente símil a um ser moribundo. Além disso, o homem revelara-me que um velho chalé, o mais afastado do mais apartado centro de Nehen, pertencia à sua tia e ele poderia, pois, alugá-lo para mim com condições de pagamento menos sufocantes.
Apesar da suave alegria que dera, pois, o ar de sua graça nos segundos discorridos após o ato de compaixão, não senti o júbilo qual expectei e, talvez por isso, sequer contestei a revelação posterior do homem ― Jonathan D’orvalho ―, mas fremi em certo grau com ela ― o que agora entendo como um tipo de aviso intuitivo. Jonathan entornava recomendações acerca da hospedagem qual eu seria obrigada a permanecer por uma semana ou mais ― eis a revelação ―, uma vez que, afirmara, não há possibilidade de retorno de Nehen até que a nevasca cesse ― qual nevasca? Eu indagaria, mas o senhor D’orvalho antecipara sua resposta e explicou que há um dia havia iniciado uma grande nevasca em Nehen e, esta, em breve chegaria às cidades centrais de Ahvalanch.
— Aproveite, minha jovem, que há uma lindíssima biblioteca na vivenda de madeira e tire algumas horas para ler sobre Nehen. ― dissera-me no cortar de seu raciocínio; a tal nevasca estava demasiado intensa e a previsão não estava tão boa para os próximos dias, ela decerto acometeria todo o estado, impossibilitando que os trens galgassem principalmente no cruzamento do leste, a ponte estaiada, e outras linhas próximas das cordilheiras, uma vez que o congelamento da superfície poderia desnivelar os trilhos e comprometer o comboio ― o qual Jonathan não hesitou em enunciar, a cada segundo, sua tradicionalidade, fazendo questão de desvelar o regozijo que sentia por ser maquinista dos trens de Ahvalanch há mais de cinquenta anos.
Resolvemo-nos e pude acessar o interior de Aecqer. Era mesmo um trem mais luxuoso, verdadeira classe alta, com passageiros que, mesmo sozinhos, reservavam cabines grandes para o conforto egoísta que não hei de objetar, eu também preferiria a solidão. Por infortúnio maldito, minha insistência corroborou ao objetivo primevo, isto é, eu estava de partida. O corredor do comboio era belíssimo, embora eu tenha pouco vislumbrado a sua extensão, pois eu estava apressava em encontrar a minha cabine. Eu precisava de um descanso agradável e taciturno.
Ao adentrar a pequeníssima sala, avistei um homem sentado no sofá esquerdo, em silêncio; eu não esperava por isso e retrocedi alguns instantes na memória para lembrar das cruciais recomendações de Jonathan, em algum momento ele decerto dissera acerca do compartilhamento da cabine, acredito; eu e minha maldita incapacidade de prestar atenção, não por menos, pois eu estava profundamente sorumbática, como já vos disse, nada era mais digno de concentração do que minha própria soledade. Sorri tímida, seus olhos estupidamente claros fixaram-se em mim como duas joias raras cujo núcleo era dominado por um exíguo abismo nocivo.
— Íris? ― Indagara-me. Sim, alguma coisa eu perdi no meio do caminho entre a conversa com Jonathan e o encontro com aquele ser estupidamente belo ― não estou, pois, lhes revelando quaisquer sentimentos senão aqueles que permeiam a pura e simples estupefação, aquele homem era belo, belíssimo, demasiado bem-posto, amedrontadoramente venusto, eis a primeira ponta de verossímil desconfiança que fiquei. Nenhum ser humano, mesmo com toda a tecnologia possível, seria capaz de ter aquele aspecto tão esplêndido.
Meu sorriso emergido continha profundo incômodo e ao homem eu me apresentei, sim, apresentei-me e questionei-me o fato dele já saber o meu nome ― “não tire satisfações”, eu pensei, “isso não importa”, eu pensei. Eu preferia mesmo é que permanecêssemos em silêncio e, na medida do possível, distantes. Sentei-me à sua frente e nada mais lhe dirigi, desviei o olhar, pois, como um quadro, eu poderia olhá-lo pela eternidade ― e não é, pois, que estou a olhá-lo desde então? É o meu anátema, oh sim, a minha maldição.
Desconfiada e desolada, senti os segundos vastos como eternidades de meu completo desconforto, enquanto insistia em me convencer de que Jonathan havia sim falado sobre aquele homem, embora não houvesse nenhum resquício de lembrança, nem a ínfima reminiscência, a favor desta possível verdade; senti-me indisposta rapidamente, pela veemência que a timidez atravessava minhas entranhas, além do lapso mental e todas as minhas opressões internas.
A cabine era um cômodo pequeno com dois sofás, um de frente para o outro; a grande janela ao lado mostrava a paisagem noturna que surgia no horizonte abismal. Já do outro lado, à direita, havia apenas a porta de vidro escuro e ornamental, bem intacta, venerando o que acontecia no sepulcro daquele antro. Tentei cessar o pessimismo e o desalento até que fui novamente cingida por aquela voz; falei-vos da voz? Um grave-rouco, perturbador e instigante, de caráter unicamente persuasivo, peculiarmente imponente mesmo possuindo calma e suavidade em seu timbre. Entrevi-o sem desejar olhá-lo, mas fortemente ansiosa para.
— Edgard Venesthron, é um prazer conhecê-la ― ele disse. Sua mão à minha direção, mirei-a em completa ausência de reação até ser capaz de tocá-la. Era absurdamente álgida. Sorri mais uma vez, constrangida e com grande transtorno inexprimível. Voltei-me à minha mala e retirei dela uma revista qualquer para minha leitura desprovida de raciocínio e conhecimento. Diante daquele embaraço acentuado, tudo o que eu almejava era passar o tempo enquanto sentia a apática friagem invernal vagarosamente se estabelecendo ao redor. Assim como eu estava exausta naquela época, bem, eu continuo, embora um pouco mais.
Peço que me desculpem, eu não estou bem, enquanto escrevo sinto-me à deriva em um oceano de exaustão, este é o terceiro dia desde que decidi relatar-vos a experiência que tive com a sutileza vil do horrífico aquém, e agora acabo de acordar, estou sob o crepúsculo demoníaco e minhas instáveis visões estão perturbadoras, além do que estive há anos acostumada. Nesta noite aquele sonho retornara para ludibriar e decair todo o meu esforço de esquecimento, lá estava o homem na janela, como seu quadro, observando-me. Por vezes hesito em continuar a escrita desta carta, porque me pego continuamente descrevendo inúteis detalhes que não deveriam estar aqui, que tipo de relato estou fazendo? Isto não é ficção! Logro mais indulgência, quero ser mais concisa, entretanto, conforme adentro o cerne do horror, ele aparenta estar mais claro dentro de mim e não posso apenas destruir o que já foi redigido com tanta alma e que possui um caráter intensamente relevante, pelo menos para mim. Acabo de pedir para ser colocada esta noite na sala acolchoada, sei que estarei segura lá, fisicamente.
Quarto dia de escrita desta carta e agora eu volto ao dia vinte e três, ao comboio, ao homem na cabine. A minha leitura naquela noite, notei após alguns minutos, residia em assuntos de entretenimento pouco dignos, eis a razão pela qual me dispersei ainda mais, entretanto vi pela visão paralela de minhas retinas que Edgard movimentava-se e observava-me e, antes de ousar fitá-lo em retorno, uma moça batera lentamente à obscura porta cristalina, três vezes; foi Edgard que a atendeu, dissera-lhe para entrar. A moça abriu a porta da cabine e sorriu para o senhor Venesthron, foi um largo, extenso e sombrio sorriso, aquilo me enojou de modo irracional, contudo havia alguma coisa de horrendo naquele feitio, uma face estranha que incomodava tanto quanto a beleza de Edgard que me prendia tão cruel, porém antes do prolongar de minha racionalidade a respeito daquela cena, Edgard interrompeu meus pensamentos indagando-me se eu desejava algo, quem sabe um chá.
Nada, eu nada pedi, minha resposta esvaiu sem voz enquanto Edgard solicitava um tipo de vinho seco para a moça e lhe tratava com demasiada cortesia, algum clima acontecia ali e eu, ébria demais com a melancolia, fracassei em notar quaisquer atmosferas dissemelhantes à minha própria, que era densa e nebulosa. Isabelle se foi, sim, Isabelle ― vocês verão no futuro, caso investiguem, que ela nunca existiu, mas por hora eu vos posso afirmar que sim, tudo aquilo aconteceu, e ela foi em busca do pedido de Edgard enquanto ele ajustava seu casaco um pouco mais.
— Uma jovem agradável por sua bela tristeza ― ele expressou, e eu não consegui compreender o teor do que afirmara. Eu estava sã, creiam, e o caráter demoníaco intrínseco daquela situação que se iniciava em espúria inocência foi exatamente da forma que vos relato. Aproveito para expor que minha doença de memória, por infortúnio, não afetou em nada o que aconteceu naquela noite e a razão pela qual verão em minha ficha a condição de “possível suicida” é, pois, que eu tento destruir, com certa frequência, as memórias, sempre me ferindo no crânio para que cada lembrança se dissipe. Vocês fariam o mesmo, eu sei, se estivessem no meu lugar e passassem pelo que passei. Se estou aqui agora, na casa de repouso psiquiátrica, não é porque sou louca, tudo o que descrevo é real, vocês terão a oportunidade de compreender melhor os motivos que me trouxeram até aqui, mas tudo tem o seu devido tempo para ser dissertado. Eu não quis tornar esta carta em algo demasiado emocional, porém, é difícil, trabalho para que ela tenha uma lógica perfeitamente formulada de cada fato e cada tétrica verdade, assim acreditarão em mim, tenho certeza.
Prossigo, sem descanso, aquieto-me nesta casa, eu e a memória fumegante daquele momento em que olhei para o rosto de Edgard e imergi-me em sua face absurdamente perfeita ― perfeita, como um anjo, quão sinistra em sua agradabilidade, como um demônio. Não tivemos educação religiosa, vocês sabem, mas se tem alguma coisa que sei a respeito dos anjos é que alguns caíram na Terra, pelo menos dentro da mitologia cristã, e eu estou certa de que aquele homem não poderia ser humano, por vezes sei que paro para analisar hipóteses sobre a sua verdadeira origem, jamais chego à nobres conclusões.
— Está falando de mim? ― perguntei com certo fremir em meu baixo timbre. Edgard, o maldito, sorriu para ascender a sua gloriosa forma.
— Não, não, estou falando de Isabelle, mas, bem, você também beira as margens da consternação, então, posso afirmar o mesmo de você. ― Sua narrativa embrulhava meu estômago e eu tão rápido passei a sentir uma nascente gélida de suor em minha espinha dorsal. Voltei-me aos meus pertences, sem responder a Venesthron, em busca de uma garrafa de água esquecida para aliviar o que estava engasgado em minha garganta. O homem ainda me olhava, a sua desumana visão era tangível e tocava minha tez como se fosse as suas mãos galgazes.
O alívio, oh sim, o alívio da sede foi transmutado na agonia mais execrável; vocês pouco imaginariam, mesmo que suas mentes estivessem banhadas do azeite fétido do averno, ainda assim vocês não seriam suficientemente bárbaros de imaginar que aquela garrafa, naquela pequena abertura, na parte frontal da bolsa, estaria ― eu juro por tudo o que há de mais sacrossanto ― abundante no mais rubro e denso sangue, cheirando à ferro; era assim que estava, escoando como se crivada intencionalmente ― quem dera, quem dera fosse uma divagação.
Assustei-me com um furor tão descomunal que mais célere do que era possível prever, como um reflexo, um feixe de luz frenética, arremessei aquela coisa na janela e a vi espatifar... todo o sangue verteu e terrificou ao jorrar-se em nossos corpos. Fiquei atônita e imóvel; o sangue borbulhava e, como exprimir o inenarrável? Aquilo era... tão impossível..., mas ao mesmo tempo era nítido de modo intimamente infernal.
Uma eternidade de mudez pela paralisia perdurou até ouvirmos Isabelle novamente à porta, olhei-a na escuridão fugaz de minha visão estendida, provavelmente, pelo pavor. Isabelle adentrou a cabine, entregou ao homem o vinho seco e partiu. Desta vez sua feição era mais horrenda, como se ela estivesse sorumbática e fizesse, eu pressenti, o possível para não se virar para mim, portanto, não pude vê-la completamente, ela se foi mais apressada do que antes e aí está mais um sinal de que sua realidade não era a mesma que a minha e que a sua constituição não era a constituição humana. Ela simplesmente não notou o sangue e sequer questionara o estrondoso som, como pôde? Eu estava tão perturbada, posso sentir na minha língua agora enquanto discorro estas letras de infortúnio; mais do que isso, eu estava intrinsecamente inibida pelo horror, pela face do mais grotesco horror.
Mas... o sangue... Sangue? Não havia sangue, não havia água, não havia garrafa. Edgard bebia o seu vinho e olhava atentamente para mim com seu ar galanteador enquanto eu não encontrava nenhum vestígio da cena terrífica. Em um átimo... tudo se foi... nada do mórbido ebulir férreo sobre o rubro oxidante que tão há pouco fora apreendido, nada daquilo estava acessível na realidade. Eu... eu me desolei... minha alma pesou na difícil e funérea sensação de insanidade; tudo o que me faltava, pensei, era me tornar uma louca e, no íntimo mais soturno, depressiva; senti que em meus olhos as lamúrias brotariam como erva daninha e que, na relva aparada da angústia, as águas salgadas verteriam para alimentá-las e fazê-las proliferarem-se até cobrirem todo o meu corpo e me estrangular, mas eu as interrompi quando Edgard questionou-me:
— Está tudo bem? Parece assustada. Foi o que eu lhe contei? Se for, por favor, não tema, isso é tão somente uma coincidência ― alegou Edgard. Eu estava sim aterrada em pânico, no entanto fui capaz de questioná-lo ― de modo um tanto incivil, admito, o que o deixou sutilmente austero, seus ares triunfantes diminuíram, todavia eu simplesmente não sabia do que ele estava falando e a seiva do inferno respirava no meu intestino. A resposta de Edgard foi sensata e em absurda genialidade, não pelas palavras em si, mas porque o que ele dizia era irrefutável e por isso me acometeu ainda mais a sensação ordinária de ambiguidade meândrica.
“Você indagou sobre o que faço e eu lhe disse que sou escritor e lhe apresentei, em suma, um dos meus livros sobre uma mulher curiosamente chamada Íris” ― explicou. Eu não sei o que houve entre a busca por uma garrafa de água até o sutil instante não vivido de um diálogo tão perfeitamente formulado. A seiva gotejando da janela ao chão frígido ainda reluzia e cintilava como um astro no meu pensar. “Você também disse ser ilustradora” ― acrescentou. Levei minhas mãos à minha testa e tentei compreender o que acontecia, eu só podia não estar atenta aos horrores daquele momento por causa da maldita melancolia ― é isso, meus caros, a tristeza profunda, o vazio.
Que sirva de lição a todos que lerem este relato, a condição depressiva é o pior de todos os males, é como se o corpo rejeitasse quaisquer informações de caráter perigoso ou duvidoso e, portanto, não se qualificasse na tarefa de ativar seus instintos de proteção e sobrevivência; estar vulnerável ao mundo, sem filtro, sem cuidado, e com disposição contrária, é um erro, o pior de todos os erros inconscientes. Olhei para a janela de novo e pensei no cenário estendido em exagerado breu, nada além da obscura paisagem enquanto o pouco silêncio, que se propagava na cabine e acolhia-me em toda a aflição gélida, foi mais uma vez obstruído pelo meu sentir nauseante, suspirei a dor, quis me controlar, mas as grandes aguilhoadas em minha cabeça, como golpes bestiais, acometeram-me de modo inenarrável, era um tipo de enxaqueca nímia que me fez levantar e sair da cabine em busca de um banheiro que me permitisse a solidão. Levei comigo alguns de meus remédios, cujas receitas estão anexadas a esta carta para garantir-lhes que nenhum deles possuíam efeitos colaterais alucinógenos, sim elas estiveram comigo até hoje porque precisei delas muito mais, uma vez que as dores se estenderam continuamente dia após dia desde então. Não observei bem a reação de Edgard, mas, dentre as confusas e inconstantes visões causadas pelo sucessivo fechar de olhos como reflexo dos árduos espasmos, ele parecia incólume frente à minha reação febril e súbita.
Foi então que me vi no corredor, aquele corretor que outrora era magnífico e que naquele momento tornara-se análogo a uma dimensão de severo esconjuro insuportável, em certo nível de turvação eu observei as cabines pelas singelas frestas dos vidros das portas ornamentais e me vi mais do que espavorida diante daqueles corpos; as pessoas estavam apáticas, estáticas, secas e todas com um semblante de horrenda agonia; muito semelhante à Isabelle, embora cada indivíduo expressasse um suplício tão próprio. Aquele calvário insólito arrefecera-me, o abalo cerebral ainda pulsava quando me vi apressada em busca de um refúgio do cenário aziago que me vinha de encontro. E a cada passo, um agouro; e o som do trem em contínuo oscilar. Indago outra vez, seriam vocês capazes de conceber a ideia de um espaço subvertido, outrora tão admirável e então, em um átimo, um mofino átimo, integralmente enfermiço? Os rostos, os risos, as consternações mórbidas. Não era magia, não, sequer um tipo de trabalho pagão cuja oferenda era, pois, eu mesma; não, não se tratava disso, eu podia sentir por cada um dos meus cinco sentidos; era algo bem pior do que tudo o que já havia sido visto até então.
Encontrei um lavabo e fechei-me em seu antro estreito, de imediato coloquei dois comprimidos em minha boca e com a água da torneira tomei-os, mas, em desespero não a vi de imediato, só a vi quando fitei aquele espelho de moldura ornamental à minha frente, a água que eu bebia era imunda e negrume, embora de gosto neutro; ela tinha um aspecto esverdeado e nojento, sim, era como ter um pântano na língua, ó mais um pavor! Assustei-me tanto que abandonei o cubículo com mais pressa do que antes, para tentar despertar a mim mesma daquele pesadelo deletério. Quem dera fosse só um pesadelo de uma noite conturbada, quem me dera. Foi mais um daquele piscar tão singelo, a visão toldada, e eu estava de volta à cabine, não sei exatamente de que modo consegui passar pelo cemitério dos vivos, dos semblantes infelizes prostrados em perturbação e afetados na paralisia imortal de seus introspectivos desgostos, não sei como, todavia, consegui e eu estava na cabine, meu cérebro ainda pungente na agonia, e eu olhava para Edgard enquanto ele admirava um papel à sua frente, fascinado, com sua fronte em límpida formosura, tão diferente dos demais rostos enlutados na desgraça. Quis revelá-lo o meu horror por um segundo, mas esmaeci nas ondas de seu proferir.
“Está perfeito! Você é uma exímia artista!” ― Sem compreender e completamente espantada, recebi de Edgard um papel e eu o vi. Ali estava uma ilustração em grafite com o rosto de Edgard numa janela de um tipo de quarto numa casa rústica. Era uma ilustração perfeita, bem próxima as que eu fazia quando jovem ― hábito que perdi com escassez mundial de papel. “Sinto-me honrado por esse presente, mas, por favor, assine!” ― pediu. Onde estava todo o sangue e todo o horror da água negra? E os rostos e as intensas dores? Quis dizer-lhe que eu não havia desenhado aquilo, mas, a melancolia, o medo... entreguei-lhe o papel sem assinar, eu apenas queria fugir, mais uma vez fugir, fugir era a minha lei, o meu único possível, e eu pensei que estava salva quando o trem parou, havia se passado duas horas e a viagem chegou ao seu fim, não posso afirmar saber como todo aquele tempo passou, soava-me no máximo meia hora, eu não sabia se estivera mesmo em um sonho ou se tinha sido envenenada ou se algo entre o espaço-tempo trouxera a lacuna mais perturbadora de minha existência, eu não sabia e naquele momento como eu poderia saber?
“Eu... preciso ir” ― eu disse com dificuldade, Edgard apenas sorriu para mim, de novo, acenou com seu chapéu e viu-me deixar a cabine levando comigo todo aquele martírio. Eu não olhei ao redor, esbarrei naqueles corpos que se retiravam do comboio, mas eu não os fitei; fui o mais rápido que pude para fora daquele poço, mas ali eu já estava completamente submetida ao horror aspecto de Edgard Venesthron, sua imagem não esvaía, sua voz não se esquecia e se eu não estivesse tão assustada, voltaria para questioná-lo e para, estranhamente, só estar com ele. É isso que ele faz.
Cheguei até Jonathan, vocês podem imaginar o quanto fui rápida, eu queria descansar do caos que se repetia em minha psique ou, ao menos, entender um pouco de seu fundamento, algo me alertava que aquele homem quase inabitado por palavras não deveria ser real e esperei em Jonathan encontrar as respostas quais eu almejava. Lá estava ele, se preparando para deixar o ofício amado, embora provavelmente descansaria em alguns minutos e retornaria para a capital. Tão logo ao me encontrar, Jonathan questionara, solícito, sobre minha viagem e eu ainda mais inocente afirmei-lhe que o homem com o qual dividi a cabine era um tanto excêntrico. O homem qual eu dividi a cabine. Edgard Venesthron. Quem sabe alguma informação pertinente, não é mesmo? Algumas informações sobre a origem de Venesthron, porventura seu contato ou quiçá um reconhecimento singelo que me acalmasse ao afirmar, mesmo com astúcia, meu equilíbrio psíquico, entretanto, tal como eu imaginei, as expectativas caíram por terra. “Ó, não, deve haver algo errado” ― afirmou o senhor D’orvalho. “Eu a direcionei a uma cabine vazia e, pela lista de passageiros, tudo estava perfeitamente correto, era previsto que uma cabine estivesse vaga” ― declarou, eu não insisti... Edgard Venesthron... Edgard Venesthron estava lá, não pode se tratar de um delírio ― pensei ― tampouco de algum outro tipo de deslize mental, seja qual for, as cenas eram vívidas e indiscutíveis ― eu quis me convencer. Não fui capaz de indagá-lo, é verdade, sequer de dizer o nome de Edgard, pois, temi ter minha estabilidade questionada e, consequentemente, não ter mais minha estadia permitida nas vísceras de Nehen. “Minha querida Íris, vamos, venha, eu a levarei para o chalé agora, tenho pouco tempo para voltar à cidade depois disso” ― advertiu Jonathan.
Meia hora até a moradia mais afastada de Nehen. Pelo caminho aprendi que na historicidade daquele pequeno lugar-nenhum, havia, pois, uma estirpe que por séculos governou a restrita população da cidade lá no centro, onde casas populares se ergueram. Na época os chalés eram poucos, mas bem funcionais para o turismo que abençoou mesmo a população mais simples. A família-governo, aparentemente justa, sempre dividia de modo razoável todos os ganhos conseguidos com os aluguéis em temporada de inverno, de modo que todos os moradores mais simples puderam erguer seus próprios chalés e passaram a alugá-los pouco tempo depois. A população continuou morando no centro, com a fonte de renda principal vinda dos chalés e, claro, do comércio local. Embora essa história me soasse profundamente interessante, eu só conseguia pensar em Edgard, em sua face perfeita e o horror entorno de sua existência, entendo o esforço de Jonathan em entreter-me com aquelas explanações, eu quis dar-lhe atenção, mas fui incapaz.
Tão logo ao chegarmos no Chalé da família D’orvalho, percebi que havia muitos quadros antigos, pinturas clássicas de rostos e pessoas desconhecidas; segundo Jonathan aqueles eram da estirpe governante de Nehen e aquele chalé pertencera a eles até que o último herdeiro conhecido o doou, ficando apenas com o castelo das montanhas; o indivíduo faleceu ainda lá e dizem, pois, que sua alma vagante permanece nos cômodos obscuros do alcácer ― esta foi a explicação de Jonathan.
“Quem foi o último herdeiro?” ― perguntei e a sua resposta misteriosa poderia ter me atiçado a curiosidade se não fosse pelo meu estado de espírito tão débil.
“Você saberá quem é, está no belíssimo quadro fixado à parede frontal da suíte” ― explicara.
Fui deixada na casa com os quadros e os rostos, a madeira escurecida e o frio. A lareira estava acesa e eu analisei cada espaço dos cômodos de meu atual lar. Para o meu infortúnio havia mesmo uma imensa moldura no quarto e, imaginem, ela carregava o rosto de Edgard pintado em tinta óleo. Eu não dormiria naquele antro ou assassinaria aquela maldita pintura, foi o que pensei, mas aquela beleza chamava-me e observá-la era uma sede imoral que me acometia com furor, ó, e que furor! Acomodei-me na sala por um tempo, mas tão logo retornei ao quarto e por ali permaneci, com o rosto de Edgard observando-me cuidadosamente como uma negra coruja à espreita, acima dos altos galhos de um carvalho seco. Os olhos azuis, a perfeição.
Eu apenas o fitava, demorando-me a piscar, para contemplar toda a sua graça inenarrável e assim se estendia a noite lúgubre e a cada segundo eu me envolvia mais à sua simetria; foi neste contínuo admirar que um tormento se revelou em assombro perturbador, taciturno e hediondo. Levantei-me da cama com lassidão exacerbada ― com meu corpo tão ártico e minha alma dilacerada na ilusão do encanto ― e aproximei-me do quadro, sem tirar minha visão de sua inquietante sublimidade. Assim ousei tocá-lo e ao fazê-lo uma vaga sombra acomodou-se pelo quarto, sim, de modo indizível, desalumiada atmosfera; como se uma névoa alvacenta viesse devagar pelas frestas, nas janelas e portas, em quaisquer tênues lacunas. Era como se todas as luzes diminuíssem e se tornassem estranhamente rarefeitas. Toquei-lhe toda a extensão do rosto e não me apeguei ao horror de estar, pois, da mesma estatura que eu, sim, o quadro, não estava imenso como estivera se observado em distância considerável; ao me aproximar toda a sua dimensão foi afetada, era como vislumbrar Edgard em sua real constituição, bem à minha frente, separado tão somente por uma camada de óleo, pigmentos e tela.
Toda a experiência macabra do sangue e das águas negrumes e dos rostos sorumbáticos que estivera até então singularmente inexpressiva em mim ― como forma de privação do que achei ser minha loucura ―, retornou vívida quando meus níveos dedos harpejaram os lábios enrubescidos do quadro, com o cuidado de quem toca um instrumento divino pela primeira vez. Hesitei, levei minhas mãos ao meu rosto suado, a dor de cabeça volveu e eu ouvi, claro que ouvi, era a voz de Edgard vindo da biblioteca já mencionada por Jonathan antes mesmo de minha viagem. Olhei imediatamente para a porta e vislumbrei o corredor, caminhei devagar, ó como era nítida a sua voz clamando meu nome como música fúnebre; eu tive a esperança de vê-lo, uma tétrica esperança de intransigente autenticidade que posso descrever-vos como uma reza ― eu jamais havia rezado antes daquela viagem, entretanto tive de aprender e agora eu sei que me acometia, pois, uma sensação de prece ao mais bondoso de todos os deuses enquanto, no íntimo, eu almejava e esperava com afinco o perturbar do mais feral demônio.
Cheguei ao recanto, abri suavemente sua porta maciça e barroca que rangia insalubre, e adentrei. As estantes eram altas e perfeitamente arrumadas, embora com bastante poeira, senti-me instigada com o conhecimento que jazia ali, pois os títulos dos exemplares ressoavam a antiguidade de suas histórias rompendo a barreira do tempo, muito mais do que eu poderia prever. Tateei devagar cada um deles nas imensas prateleiras ― muito embora eu estivesse tensa e ainda com aquela enxaqueca dos precipícios de meu averno. Eram obras raras, percebia-se pelos títulos, muitos em latim e outras línguas quase mortas. Observei por minutos longos todos os abandonados papéis na escrivaninha também, documentos perdidos ― indaguei-me sobre quantos anos alguém não inspecionava aquele recôndito, era tão grandioso. A grandiosidade daquele lugar, entretanto, não trazia sentires fleumáticos, sua aura agoniava e minha abominação renascia das covas, reencarnado em estranheza e medo, muito mais quando os dois candeeiros próximos à escrivaninha se acenderam em chamas negras e, ainda, reluzentes, trouxeram a voz de Edgard outra vez.
Se não fosse o seu valor, para mim, tão estranhamente fascinante, eu decerto teria fugido daquele lugar no momento seguinte de sua voz ter, pois, espargido pela primeira vez na densa neblina que cobria cômodo a cômodo; ou ainda o teria feito logo ao ver o quadro na parede; contudo Edgard era fascinante, deslumbrava-me, horrorizava-me e seduzia-me. As circunstâncias favoreciam a permanência, além de meu completo abandono aos recursos primitivos de autocuidado, o feitiço daquele ser já morto ― e revivido por algum tipo de patogênica alquimia ― conseguia cativar toda a minha atenção e assim me fazer estar ali. Foi por isso que não fugi ― tal como me era ordinário fazer ― e, por consequência, as escuras chamas, em um paradoxo inconcebível, iluminaram um livro na estante e, neste livro, eu não sabia, o feitiço fúnebre habitava do mesmo modo que a tragédia e a agonia me habitavam.
A obra estava na segunda prateleira atrás da escrivaninha, era a única de capa cor gaultéria, escrito em dourado rústico. Acerquei o exemplar com todo o desvelo que a mim mesma jamais doei, sem esforço notei que meu nome era proferido bem ali, aquela era a fonte da voz de Edgard e que harmonizava com a ansiedade que me sorvia: “Íris... Íris” ao passo que segurei o livro, finalmente, muito apreensiva, e li seu título cursivo: “Minha Íris” escrito por Edgard Vanesthron, todas as agulhadas em minha fronte esvaíram como chuva de verão assim que li aquele título, e o vazio deixado pela dor ocupou-se de sua lembrança, para me oprimir silenciosamente; junto dela, uma expectativa infesta de encontrar na leitura compulsiva, sob a rédea do extraordinário, algo próximo a um vínculo sentimental, além, claro, da avidez desvelar o que havia nas páginas daquele livro e por que ele me chamava e por que encontrei Edgard ― ou o seu espírito ― em meu caminho. Pelas indagações e pela diabólica atração, decidi lê-lo, inda que debaixo da angústia que advinha da asfixia, do pesar árduo que me consumia e da afronta que me esperava, serena, para o xeque-mate.
Vislumbrei as primeiras folhas de seu interior, e admirei-me ao ter a consciência de que eu estava mesmo ludibriada, o apego na possibilidade de estar frente uma majestosa, romântica, ― e mais ainda ―, mágica e cálida história, repercutia em meu espírito sigilosamente, por conseguinte comecei a ler cada singela sílaba em voz alta e nítida, ato este que cessara sem que eu percebesse e não poderia ser diferente, toda a formosura exacerbada protege uma verdade dantesca vinda de suas entranhas e eu comecei a notá-la assim que me embrenhei na primeira estrofe. O bálsamo daquela simetria de Edgard, a ambição por seu tom, a ganância por suas retinas, a vasta relevância de seu enigma e, por fim, o meu caos afetivo, chocavam-se com a factualidade coexistencial, tão mundana, discorrida naquelas folhas cor de pólen, arfando-me frente a tal medonha malignidade.
Edgard escrevera cada coisa ― repito, cada coisa ― acontecida no período da viagem que fiz em Aecqer, acreditem ou não, estava escrito e possuía detalhes meus que nem mesmo eu poderia saber; como se não bastasse, a dissertação incluía os pormenores funestos da mente daquele sujeito ― quem me dera nunca os ter conhecido. A assustadora narração do amaldiçoado romance transtornou-me a um pânico umbrífero, paralisei, a verdade era-me intimamente aterradora, minha sepulcral condição anterior a tudo aquilo jamais seria símil à mediocridade da vulnerabilidade que compreendi estar sujeita sabe-se lá desde quando, pois, se a narração se iniciava no trem, como julgar que tais presságios terríveis não vieram de outras histórias absconsas? Quais eram as magias ocultas invocadas por Edgard? Que tipo de diabólica premonição era aquela? Sua sombra estava sobre mim e como eu me lembro... lembro-me tão bem e posso, e irei, transcrever agora até onde minha mente suportar.
“Eu estou morto ― onnomapherhesí ― todavia, pelo antro de Pherhesí, veem-me ressurgir como anima, tão consciente, como se vivo; em vida redigi a beleza execrável do que acontece ― onnomapherhesí ― no futuro, no dia vinte e três de dezembro do ano dois mil e setenta e três. Ela, de nome Íris, com agradável aspecto, está digna e pronta ― onnomapherhesí ― para os horrores que estou cometendo, a começar pela angústia lôbrega que faço jorrar aos seus lábios de sepulcral-escarlate. Eu a escolhi e ela é minha, pertence à fonte primeva de Pherhesí, esta fonte que eu sou, assim, ― onnomashryos ― por meio da permutação, fazemo-nos uno espectro das sombras de modo a germinar o primogênito do vigésimo segundo século, o século da soberania ― onnoma ehret ― de Pherhesí. Meus planos são incontáveis, minha sede é a sede de Pherhesí e eu estou em Aecqer, o comboio, e eu espero Íris pacientemente ― Aecqer phrephahen ― tenho o poder de ludibriar estes seres da terceira dimensão, pois já não faço parte dela e, mediante Pherhesí, eu sou imortal, eu ― onnomashryos ― abismo o novo mundo com o meu eterno retorno. Íris alcançara a languidez precisa para o meu desvelar como anima e, por isso, não há dúvidas de que eu a conduzo pelas palavras originárias.” ― escrevera.
Como eu gostaria de olvidar aquilo tudo. Cada frase daquela primeira estrofe ressoava em meus ouvidos, minha voz não tinha vigor algum para ler, mas o quadro lia, ó sim, mesmo estático, mesmo no quarto, mesmo distante, ele lia ao pé de meu ouvido, tão limítrofe à minha cerviz com sua névoa agora opaca a incensar o ambiente de madeira; o seu vil poder fulgurava e eu, apenas e por demais, lia. Nenhum tipo de oxigênio parecia ser capaz de alcançar meus pulmões, tudo isso no parágrafo exordial; meus olhos, no entanto, transitaram frenéticos na alínea seguinte e eu não pude contê-los. Compreendam que a dificuldade de transcrever a memória tão estável daquelas páginas crescera, pois agora absorvo Edgard se aproximando de mim outra vez, posso assimilar sua presença prestímana como há tempos não apreendia e, por isso, minha dúvida a respeito de conseguir continuar a redigir esta missiva arde bem mais do que outrora, arde tanto que já não durmo porque eu sei, ele estará lá para me aprisionar. Tenho certeza de que as palavras ― as malditas palavras impronunciáveis e repetitivas ― são a razão do que agora me acomete, deste intrínseco desespero, desta medonha sensação de companhia. Sempre que penso naquelas palavras, uma consumição emerge insípida e se demora a esvair; não seria diferente agora em que as escrevo, aliás, talvez por escrevê-las, tenham mais poder sobre mim.
“Quão bela, minha bela, minha Íris; sinto seu choro, ouço o seu pesar; cada passo seu conta-me um desespero singular que traz cálido conforto ao predomínio de Pherhesí. Quando o corpo de Íris adentra a cabine de Aecqer, eu vislumbro a sua sujeição ― onnomashryos onnomapherhesí ―; profiro seu nome para deixá-la perturbada e ela está perturbada tal como aprecio, possuída de uma soturnidade nímia cujo perfume declina-me ao fogo do inferno profano. Seus pensamentos são estes ― onnomapherhesí ― de angústia e incerteza: “Jonathan dissera-me a respeito deste homem? Que beleza estupidamente fascinante! Estes olhos, parece que posso fitá-lo pela eternidade.”; assim ela se senta e promove cada um de seus questionamentos ao obscuro de sua melancolia, é assim que eu a quero e por isso é assim que acontece, mesmo no furor de sua razão, toda a autopreservação há tempos lhe foi tirada, para ser digna e estar pronta ― onnomashryos onnomapherhesí.
Apresento-me, embora todo o seu corpo já me reconheça; ela sorri no embaraço de seu incômodo ardiloso. Isabelle surge, tal como previ, para trazer-me um pouco de vinho; nada disso é real, mas sei que envolve Íris de modo a apaziguá-la para o que há de vir, seu desconforto é a minha morada, de fato, e traz as pujanças cruciais para o efetivar da primeira das suaves ilusões que tramei há muitos anos, desde quando sua elementar treva formou-se no cerne da sua desgraça, eu poderia achegar-me na realidade tangível que a cinge sem os jogos quais aprecio, mas sou em demasia admirador da beleza fúnebre, por isso oscilo a serenidade com o pavor, o horror com a angústia, a agonia com a quietude, ó quão aprazível. Aqui está, minha Íris, em busca de alívio, vejo-a e faço a minha seiva viva em suas mãos, a reação de seu rosto tristonho, ó, tão delicada, tão deslumbrante lutuosa constituição, transforma-se em pavor atônito partindo de uma reação súbita. O sangue que ferve tão logo se orvalha sobre nós, admiro-a na repugnância e ascendo o poder de sohmphorhen”.
Devorei suas palavras como um demônio devora um ser vulnerável, como Edgard devorara-me e devora novamente pelo seu retorno hediondo. Sinto-me nas anuviadas ojerizas, possuída de fraqueza e aversão. Acreditem, o que li perfurou-me tão inerente que, como posso explicar, toda a índole lúbrica, a feição mortífera, o traço indigno comprimiam meus órgãos e impediam-me de sustentar vida. Estava, igualmente, cada vez mais árduo sustentar o corpo; as minhas pernas trepidavam tal como minhas mãos vibravam, todo o meu equilíbrio se desestabilizava e meus sentidos alçavam cumes opostos, de minuto a minuto; eu era capaz de ouvir o crepitar da lenha na sala e a efemeridade das percepções queimavam no meu calvário. Eu gostaria de ainda ter aquele livro e eu o teria em minhas mãos se não fosse pela fúria de queimá-lo, instigada pelo crepitar, na busca pela sanidade e pelo aprumo, apenas queimá-lo e assim vê-lo desfazer-se na magia tétrica das chamas umbrosas. Demorara a, para a minha infelicidade, advir este esforço de coragem, uma ou, quiçá, sete mil eternidades ― assim soava para mim, pois o afã, ah, o afã em ler as palavras daquele ser inumano, o afã era o flúmen das veias minhas, a torrente de minha paixão inconcepta e de minha aversão conjecturável. Se não fosse tal híbrido afã ― não importa, essa é a verdade, sem a avidez ou com ela, o destino seria o mesmo, minha via-crúcis esteve sempre consumada.
“Íris, ó, minha Íris, tão estática, aproximo-me de seu corpo e perfuro o portal para o seu espírito, delicadamente, seu eflúvio é agradável e quente; introduzo ali, em êxtase, a minha figura pelo fragmento de minha alma; minha infeliz adorável se assusta e está mais pálida, contudo ainda imóvel pelo pavor, porque o poder de sohmphorhen faz ― onnomapherhesí ― conservar-se a condição inerte de minha desventurada e de todos os pobres infelizes que estão sob o controle pérfido e magnífico de Pherhesí. Ssahmqenehr, Ssahmqenehr Pherhesí, seu poder conduz a humanidade através do espelho de mim sobre o corpo de Íris e sobre o ser do primogênito; tudo o que desvelei e desvelo de sua consciência é a chave etérea, ó Ssahmqenehr Pherhesí, crio mundos com o seu poder, destruo dimensões que se negarem a perpassar a sua grandiosidade ― onnoma ehret. Agora em minhas mãos está Íris, sorrio porque isso a amedronta, a noite é obscura, pois esta é a reação universal diante Pherhesí, o fundamento responde ao poder do fundamento quando este é exposto pela fundação; a criatura é maior agora, e está acima do criador. ― Escute, minha Íris, na eternidade de sua subjugação, retirarei o único fragmento de júbilo que descansa em sua alma, retirarei através de seus olhos pulcros ― digo-lhe, suas lágrimas esvaem em pavor; sorvo-a e sua feição se torna fantasmagórica, sorvo-a pois que foi essa a minha atração desde o princípio, a troca de almas, a eternidade em lembrança e melancolia; neste plano eu a destruo devagar para que refulja sempre e tão somente o seu merencório ser, para a efetivação do perfeito devir do primogênito”.
Porventura haja uma desconfiança, eu sei, estes relatos seriam mesmo reais? Sem o livro de Edgard, provar sua existência é laborioso, mas, tenham certeza de que nada disso viera de uma criatividade bestial, reviver verso por verso, eternizando-os na escrita outra vez tem me destruído, minhas crises pioraram, as paralisias se estendem a pequenos comas obscuros; foram duas paradas respiratórias nos últimos dois dias, está tudo relatado e a tudo isso vocês terão acesso, esteja eu viva ou não. Sabe, reside em minha natureza um imensurável medo de morrer, desde que vi e li Edgard, a morte é o palco de meu drama e, jamais, as cortinas; será que encontrarei ele, o escritor, em algum outro lugar além? Sinto que sim, algum outro lugar além de minha própria alma. Edgard espera-me e eu temo, porém, entrego-me, porque não há circunstâncias suficientemente nobres que signifiquem a vida para mim, ele tirou tudo, toda a ledice, toda a esperança; era mesmo demasiado raro eu ter um momento de prazer, agora é apenas impossível.
“Ordeno a vinda de Isabelle, a alma vagante que encontrei ao vagar minha própria alma jamais desvinculada do que foi, em vida, redigido por meio de Pherhesí. Denomino-a Isabelle para fazê-la real, nomear energias perdidas, eis um inquestionável fato, enleia-as àquele qual as nomearam. Portanto posso moldar, e moldo, a face de Isabelle no horror que me convém, seu corpo é também a minha criação desde que proferi: ‘sehsqor phrephahen’, e sua estrutura humana instituiu-se. Ela adentra para quebrantar a híbrida realidade que transmutei, para abrandar a paralisia sublime de sohmphorhen e trazer meu ilusório líquido. Ordeno que se achegue disposta, sempre apaixonada, e assim apreendo as nuances do encanto de Íris por mim. Íris está no êxtase da melancolia, o apagar da chama frágil de sua alacridade demonstra o efeito esperado, além disso, está estarrecida e confusa com a ausência de todos os elementos sanguinolentos que ludibriei para terrificá-la, é assim que deve ser; digo-lhe sobre nosso diálogo jamais existido, pois não é preciso haver, de fato, já que sei tudo sobre Íris e a manipulo devagar, conforme sua abertura natural chama por mim; sinto-a mais intricada, tanto que suas dores floreiam tal como previ ― suas dores indicam o efeito de estar, pois, em elo com o que está do outro lado, isto é, comigo. Ah, o outro lado, a morada de todos no pós-vida, somente eu, contudo, sou capaz de fazer o que almejo neste lugar-nenhum, só eu possuo Pherhesí. Íris guardará um abismo, assim a preparo, este abismo a deixará no futuro para o vir a ser do primogênito, no entanto, ela jamais se esquecerá deste abismo, pois ele sou eu; hoje ouve minha voz e vê minha face e se deleita e se terrifica, amanhã há de odiar e amar a lembrança.”
Mas há muito, há muito o que vos segredar ― que naquela noite eu desvaneci na agonia mais pútrida, sim, dentro do silêncio mais violento e sem saber como respirar, ó sim, decerto pela alma de Edgard em meu âmago eu fui afetada; ele sabia tudo o que fiz e deve saber o que faço, ele escreve-me desde então, e talvez guie assim minhas próprias ações. Não sei quantas noites passei imersa naquela atrocidade inenarrável, e a escuridão sombria aos olhos vinha como lapsos de imobilidade e tempo, semelhantes ao que acontecera no trem, cenas de indescritível aflição de minhas próprias mãos contra meu próprio corpo, tudo tão frequente e febril, como se eu tentasse destruir tudo o que Edgard penetrara em meu espírito; assim não vi brilhar dia algum; todo o tempo estive com cada uma de suas frases que li se repetindo como um sempiterno sino de mortuário, em especial aquelas que estruturavam a última estrofe que fui capaz de ler; aquela hediondez que no mais inconsciente de mim, eu sei, compreendi, pois foram elas que me levaram à fúria.
“Há de beber sempre este meu dissabor ― eu digo ao vê-la de joelhos com suas escleras fulgurantes enquanto me ilustra com seu grafite a cena que há de se repetir para sempre em seus pesadelos ― abri-lhe os lábios trêmulos e dei-lhe o licor do infortúnio, da blasfêmia, do mais horrífico vazio perturbador que eu sou; e ela bebeu, sua ébria mente tornou-se ainda mais sã sobre sua absurda desolação; agora cada noite mais escura ser-lhe-á e sendo mais escura, há de verter-lhe a solidão e o desconsolo, prostrada ao soturno que eu sou, e ela assina seu eviterno elo comigo, porque toma agora minha essência desta fonte primeva, e ergue-nos ao novo gênesis de um nascimento. Toco-lhe o rosto frígido ― Você pertence ao meu aflito pranto agora, às minhas trevas e à minha atra luz, e chamarás, pela eternidade, o nome de meu fundamento, para que eu lhe afogue no mais côncavo de meu oceano elegíaco e guie todos os seus rumos. O primogênito há de tomar o meu reino e abrir as portas dos últimos abismos ― sussurro-lhe e preceituo, ela obedece e diz, para manar-lhe, por fim, toda a nequícia cruciante: Srhyos ― ela diz por que há de sempre dizer ― Srhyos.”
Não sei bem quando fui encontrada, mas eu estava franzina, violácea e sem forças, em meio à branquidão, e só sei disso porque os médicos me revelaram. Fui levada às pressas para o hospital por um lenhador e permaneci desde então entre o horror da lembrança e a vida que perdi, e como perdi, mais inacreditável do que vocês possam devanear, eu fiquei um ano desaparecida. Do dia que narrei em perfeição de detalhes, vinte e três de dezembro de dois mil e setenta e três, ao dia vinte três de dezembro de dois mil e setenta e quatro. Um ano de fragmentos. A maldição e meu martírio são infinitos; desnutrida, fantasmagórica e sozinha, após ondas bárbaras de demência ― só podia ser loucura, não é?
A perturbação do mais hediondo, a tortura da não-morte e do não-morrer, tudo era minha insânia, eis a resposta do mundo, insânia, nada além dela, alienação e desatino, mesmo que as cenas ditem o contrário e revelam minha luta para sobreviver naquele lugar. Pouco depois de me ver no hospital, consciente, um escândalo floresceu no meu imo, o caos por uma busca: o bebê. Sim, eu só conseguia vociferar sobre o bebê, eu o resgatei na lembrança das cenas vividas naquele ano extraviado e que me vinham em clarões, como reminiscências de um sonho. Doutora Paole contara-me com uma delicadeza indizível: “Os exames revelam uma gravidez, mas, infelizmente, você estava sozinha quando foi encontrada”. Foi entre os pinheiros densos das cordilheiras de Ahvalanch que sangrei, mas não morri, por uma fuga em busca de salvação e, sim, a morte daquele ser vindo de uma imunda concepção de almas, apenas almas, quão horrífico! Não sei como, dei-lhe à luz na neve esquálida e o perdi para a escuridão.
Fui encaminhada para o hospício porque as paralisias traziam sempre alucinações e eu, como um explosivo, buscava a morte súbita ― não queiram conceber a ideia de um eterno nascimento maldito em seu útero, dia após dia. Permaneço aqui porque é preciso... eu sei, eu sei que deveria lutar para defender minha sanidade e talvez retornar àquela mansão tétrica e encontrar aquela criança... eu sei. Mas a confusão que me toma é o maior obstáculo e as crises são nefandas, eu não compreendo o porquê de tudo isso e sei que não hei de compreender, talvez se eu tivesse lido o livro até o fim, para saber meu exício e o começo da vida da criança, talvez. Eu nunca fui uma heroína, eu sinto muito, sou o soturno medo, dominada pelas lembranças, refém de palavras impronunciáveis; eu sou o fundo de um abismo sem fim. Quando miro esta minha face apavorada e aponto a mim mesma a possibilidade de eu ser só mais uma pobre sujeita acometida de patologias mentais, logo me lembro, as cenas, os clarões, as sensações, as emoções, a luta, o bebê, os olhos de Edgard, o licor, o sangue. Não é, não, não é uma desordem da minha psique, eu estava lá e eu sei o que eu vivi.
Eu também sei que sou menos desgraçada por não ter total consciência de cada vivência naquele lugar que não era o chalé, ó não, pois ainda no dia de minha chegada, após a leitura daquele livro ominoso, eu saí transtornada em meu delírio para o meio da nevasca e andei longas horas até encontrar aquele castelo. O Castelo de Venesthron. Seria impossível se o impossível não caísse por terra desde o dia nefando, o dia vinte e três. Ainda tenho minha razão questionada, em qualquer instância, por todos ao redor mesmo depois de tantos anos, eu menti minha identidade para preservar cada pessoa que um dia conheci, pois decerto morreriam de desgosto se soubessem, pois que ouviriam as más línguas que acreditam que eu fui para as cordilheiras para matar aquele pobre recém-nascido e o abandonei no manto do arvoredo; isto não é verdade, não era um pobre ser, era o ser concebido pelo diabo, pelo horrífico, o ser que decerto está por detrás do caos dos nossos dias, da névoa que esparge sempre às dezoito horas e do sol que já não brilha como antes, a ele pertence toda a culpa, que estejam cientes e em alerta, pois se aquela coisa veio a ser de dentro de mim e sumiu naquela escuridão gélida, decerto está viva e abre, desde então, os portais do inferno.
“Escuta-me”, disse o Demônio, pousando sua mão sobre minha cabeça. “A terra de que te falo é uma terra lúgubre na Líbia…”