Lotus Aqua Obscura

Imagem criada por Sahra Melihssa

Agachada sob a sombra crepuscular, olhei e vi um ancião cujos olhos exaustos caiavam seu espírito perverso; o que, se por mim fosse evidente, dali eu teria fugido antes mesmo do poente efetivar-se. A verdade é que, até então, eu ignorava o domínio inenarrável dos seres Magistas sobre a realidade humana; mas ali, diante do velho em vestes míseras e ínfima voz, tive de renunciar às minhas ignorâncias, as quais, por anos, governaram-me o ser. O senil peregrinava entre os arvoredos mais úmidos e, quando colidia, por sorte ou azar, com alguma alma vivente, já de imediato iniciava a revelação perturbadora que era obrigado a carregar consigo. Confesso o haver julgado um Mago, mas, revelo que não detenho tal vera; por muito ousaria dizer que se tratava mais de um demônio atormentador originário de intermúndios tétricos; ainda assim a dúvida persistia, pois que suas habilidades fascinavam qualquer deus e, portanto, não poderiam advir dos seus caídos e expulsos — o herói nunca admira o vilão. 

Antes de dar-me conta, seu timbre acre invadiu-me os tímpanos e eu fitei o sujeito franzino. Eis que, então, já não pude deter-lhe; estagnei-me à sua presença e, ao léu, o ouvi do início ao fim, e os seus lábios contavam em penumbra que a noite há de ser, por tempos, única possível; pois que os céus negros não se banharão do sol; o sol em si, negrume, cálido pousará apagado no horizonte. E nas orlas os barcos guiar-se-ão, não pelas estrelas, mas pelas divergentes sombras. O plantio noturno gerará frutos sombrios e os frutos serão ingeridos em silêncio; seus sumos violáceos serão doces, mas turvarão os corpos famintos; e as plantas, e os grãos e tudo o que vem da terra deterá sutilezas nos sabores e eflúvios constituintes. “E até as chuvas ― não duvides ― cairão como gotas de obsidianas ácidas. Por tempos todo fel cobrirá os mares e” ― descrevia — “as herbáceas brotarão dos solos e das águas e elas serão feitas de treva e a treva será insólita”. E, por cada segundo, o ancião trazia à voz etérea os pormenores daquela realidade que não nos pertencia mais, entretanto, conforme o ouvia sentia-me estar inserida nela como pertencente. “Ouça, não só escute! Pois que as árvores secretarão licor viscoso e seus galhos languinhentos soarão fúnebre sibilo que será, pois, apreendido em perfeição pelas orelhas dos ouvidores e dos moucos”. 

Tentei, ávida, retirar-me, em corpo, daquela insanidade; no entanto caíra a noite com o peso das palavras ouvidas e o peso era similar às montanhas laminadas das Cordilheiras do Sul. “Pois que das mais horríficas herbáceas, a Lotus Aqua Obscura, invicta, mui mais apavorará; o manjar de seu caule e suas pétalas em ilusão, o êxtase, provocará; e a água qual se fundamentará será mais umbrosa que o firmamento; e quisera eu não a ter degustado com afinco, pela fome miserável a corromper meu antro”. Com frêmitas mãos, o velho, de seu bolso, retirou uma caixa amadeirada cuja fragrância era de bambu e tão logo abriu-a revelando uma semente. Esticou à minha direção o objeto e gargalhou, orate, aos ventos todos que, inopinos, tornaram-se violentos. “Coma esta semente!” ― ordenou o velho. Olhei aos céus, roguei piedade. “Saberás que cada Lotus Aqua Obscura é, pois, um humano sucumbido, transformado, fadado por fim, e sentirás em tua tez o sabor da língua pegajosa e a saliva cinza dos famintos; e toda a vivência de sê-la! Tu passarás e testemunharás o veneno de suas vísceras. Coma esta semente, coma agora esta semente!” ― e pôs-se a repetir, ininterrupto, o dito final, de modo a desordenar-me a sanidade. Tomei-lhe a semente e a engoli, seca. “Assim renascerás a única planta de espírito e corpo igual aos animais desta classe sapiens sapiens, caso contrário o meu haver não mais firmar-se-á no juramento: Hei de vagar pelo mundo humano fundindo o sórdido ao vil para alertar a infame escuridão que há de vir”. 

Aflita, forcei-me a arrevessar o grão, mas, já era tarde. Presenciei os pinheiros a vergarem-se e a tempestade vir a ser e todo o sombrio a firmar-se e o homem, maldito, esvaiu como saibro em alto-mar deixando, apenas, uma abominável mensagem: a revelação perturbadora que era obrigado a carregar consigo. Segurei-a em minhas mãos e senti a saliva e as línguas, e fui, na pele, a planta coloidal; e do reino Plantae espargi essência de clorofila debaixo da atmosfera fumegante em névoa, a névoa mais rara em gigante e medonho horizonte abominável. E a névoa era densa como meus olhos, os quais eu não possuía; e meus pés, que não eram pés, estavam sucumbidos ao gomoso e frio chão, o qual não era chão e, antes de haver, pois, senso sobre a insânia a difundir-se; senti sede, a inenarrável sede pelo sangue do inimaginável. A treva acima, a neblina e o terror; bem soube que era eu a plantae-animalia, pois que o veneno se açodava em minhas artérias hialinas e a maldição era hedionda e a ela eu me debruçava; assim, tão logo senti uma presença próxima e era no flúmen qual eu me firmava, então roguei pelos deuses de todos os elementos e vi ―  juro aos santos e profanos ―  eu vi o ancião perverso a, de novo, aproximar-se. E quis vociferar pelo socorro de um ser qualquer sob ou sobre a escuridão a cingir, mas eu não tinha boca e minha boca era feita de pétalas e das pétalas escorria elixir de morte e argila. 

Eis que o macróbio sórdido e vil, com violência bruta arrancou-me do pântano e levou meu venusto caule à língua áspera. E a língua áspera era cinza e pegajosa e eu vi, por fim, a névoa mais rara no gigantesco horizonte e eu a vi antes da absurda dor tomar-me o âmago. Moída em fel feneci antes da ausência ser-me única possível, chorei as lágrimas moribundas que me restavam e despertei de súbito como de uma paralisia do sono e olhei para o céu e era dia e o dia luzia tenro e afável. Nada havia além da lembrança vívida dos tempos mais obscuros que virão, onde o sol será negrume e queimará e as algas serão alimentos pútridos aos famintos e as frutas terão sumo violáceo. Retomei à angústia mais etérea, pois que agora eu detinha como cruz ao torso, a pesada revelação perturbadora e, sem ter como dela livrar-me, sendo obrigada a carregá-la comigo; tornei-me andarilha das terras humanas em busca de alguém para devorar minha própria semente.

 
 
Sahra Melihssa

Poeta, Escritora e Sonurista, formada em Psicologia Fenomenológica-Existencial e autora dos livros “Sonetos Múrmuros” e “Sete Abismos”. Sahra Melihssa é a Anfitriã do projeto Castelo Drácula e sua literatura é intensa, obscura, sensual e lírica. De estilo clássico, vocábulo ornamental e lapidado, beleza literária lânguida e de essência núrida, a poeta dedica-se à escrita há mais de 20 anos. N’alcova de seu erotismo, explora o frenesi da dor e do prazer, do amor e da melancolia; envolvendo seus leitores em um imersivo, e por vezes sombrio, deleite. A sua arte é o seu pertencente recôndito e, nele, a autora se permite inebriar-se em sua própria, e única, literatura.

Anterior
Anterior

O Olho e a Consciência: Uma Leitura Fenomenológica de O Coração Delator, de Edgar Allan Poe

Próximo
Próximo

Capítulo 12: Seu Raro Rubi — Rubi Áurea