Uma História de Natal

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Uma História de Natal 

por Sara Melissa de Azevedo - 5 de dezembro de 2024  

Mariê Aloe despertara na aurora morna daquele verão recém-chegado; sentia-se enjoada e melancólica. Pousou suas mãos em alguns limões, escolhendo o mais macio para espremer n’um copo d'água. Sentou-se enquanto degustava sua bebida gélida e observava, pela janela, o amanhecer e a brisa que fazia os trigos do jardim dançarem. Mariê sempre fora apaixonada por flores de trigo, em especial por aquelas, tão douradas e vívidas. Destacavam-se na imensidão. 

Após uma reflexão silenciosa, e por ter esgotado sua água por completo, levantou-se. Contudo, uma vertigem atingiu suas percepções, e ela temeu que estivesse doente. Aprontou-se e, antes do despertar de seu esposo, foi ao Lar de Dhera Nimare, pois precisava estar disposta para a ceia de Natal do dia seguinte — convidara tantas pessoas queridas e estava empolgada para fazer os seus pães doces com frutas cristalizadas. O futuro, todavia, nunca descansa sobre o leito da certeza. Mariê soube do que nunca esperava saber e retornou à sua casa trazendo no semblante um medo, uma estranheza, uma surpresa enraizada. 

Descansara, como orientado no Lar de Dhera Nimare; sua médica, por sorte, estava disponível naquela manhã. Mariê conseguiu fazer os pães, as geleias de mirtilo e cereja; as decorações com pinhas secas e azevinhos. Seu marido, Dom Ithar Aloe, cuidara, como sempre, de sua esposa, especialmente ao saber do pequeno mal-estar natinal. Mariê, porém, não lhe contou a verdade, queria revelar na hora certa, quando estivessem a sós, após a ceia em família, na calma do Natal, ao som do piano pelo arsmusian enquanto dançam lentamente. Era preciso cautela para anunciar uma situação tão delicada. 

Quando, por fim, o instante chegou, Mariê hesitou. Os olhos de Ithar eram dois lumes esmeraldinos. 
— Querido… — iniciou. Ele a fitava, atento como sempre fora. — És a luz dos meus dias, meu recanto seguro… — Ithar sorriu, amava ouvir as palavras doces de sua mulher. Lágrimas brotaram nos olhos de Mariê. — Há algo que preciso contar a ti, meu bem… — Seu esposo se preocupou. A verdade era só uma, e Ithar a ouviu com o coração apertado e exaltado. — Estou grávida, Ithar… de verdade… há um bebê em meu ventre… — Entre medo e alegria, o esposo de Mariê abraçou-a, acariciando seus cabelos. 

Não era fácil conceber um bebê ventral, tampouco cuidar de sua saúde e do seu bem-estar. A vida de um ser humano ventral era curta, mas, sendo Ithar e Mariê nascidos pelo método Indheren, jamais imaginavam ser possível a concepção natural. 
— Eu sei que ele será frágil, mas podemos levá-lo a Vonssihren, para a comutação genética em… — Mariê foi interrompida por um beijo. 
— Minha perfeição… ouça bem! Esta criança será saudável e feliz. Faremos tudo o que for preciso para que ela tenha uma vida longa e seja forte como nós somos… — Ithar acariciou a barriga de sua esposa. — Consigo entender por que alguns escolhem a vida ventral… sinto a energia da existência em ti, minha perfeição. Notei em teus olhos que algo mudara nos últimos dias… — Mariê sorriu, derramando-se em lágrimas. 
— Oh, meu querido… estou com medo… — sussurrou. 
— Não te preocupes, perfeição; estou e estarei ao teu lado sempre… Sempre… 

De fato, Ithar esteve ao lado de Mariê, nunca a deixou só, e aquele Natal mudou suas vidas, levando-os a ver as flores de trigo com mais sabedoria, entendendo o tempo que o tempo sopra em suas faces e, acima de tudo, o que o amor é capaz de fazer sobre todas as coisas. Mariê deu luz a um menino e uma menina, gêmeos univitelinos. As crianças passaram pela comutação genética aos dezoito anos e, em função disso, viveram cem anos mais do que o esperado para quem nasce de um ventre humano. 

Ithar e Mariê viram as crianças envelhecerem, viram-nas morrer naturalmente. Não tiveram outros filhos. Foram profundamente dedicados, por cento e setenta anos, aos gêmeos e, mesmo após a morte natural de Alegra e Felice, não viram razão para uma segunda gravidez e se recusaram a ter filhos pelo método Indheren. 
— Eu sentia-os em mim, Ithar… um vínculo inenarrável… não posso amar mais do que os amei... perdoa-me? Queria dar a ti todos os filhos que almejássemos, mas essa concepção ventral mudou algo em mim… — revelou. 
— E em mim também, minha perfeição. Estou contigo, concordo contigo. Guardaremos a eterna lembrança de nossas crianças e seguiremos sós, tu e eu, na longa vida que ainda nos resta. — Ithar soube acalmar o coração de Mariê. 

Os epitáfios dos gêmeos foram escolhidos por eles, um ano antes de falecerem. A morte natural permite a compreensão plena de sua chegada. Alegra teve dois meninos ventrais, não fez comutação genética em nenhum deles. Felice teve três filhos, duas meninas e um menino; igualmente, recusou-se a fazer a comutação genética. Somente o filho mais velho de Felice, ao atingir a maioridade, quis passar pelo procedimento. Os gêmeos faleceram em seus quartos, adormecidos, no dia de Natal. 

Epitáfios 

Alegra Aloe Nnae 
"Eu não odeio o tempo, eu o amo, pois ele me permitiu viver." 

Felice Aloe Mizzior 
"Tive de partir, mas deixei no mundo humano a minha verdade; que ela seja útil aos que ficaram." 

Sahra Melihssa

Poeta, Escritora e Sonurista, formada em Psicologia Fenomenológica-Existencial e autora dos livros “Sonetos Múrmuros” e “Sete Abismos”. Sahra Melihssa é a Anfitriã do projeto Castelo Drácula e sua literatura é intensa, obscura, sensual e lírica. De estilo clássico, vocábulo ornamental e lapidado, beleza literária lânguida e de essência núrida, a poeta dedica-se à escrita há mais de 20 anos. N’alcova de seu erotismo, explora o frenesi da dor e do prazer, do amor e da melancolia; envolvendo seus leitores em um imersivo, e por vezes sombrio, deleite. A sua arte é o seu pertencente recôndito e, nele, a autora se permite inebriar-se em sua própria, e única, literatura.

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