Rui Mansur - Parte 1
Seus olhos jamais se perderiam em minha memória, ainda que o tempo se regozijasse na tarefa do esquecimento. Contudo, a noite solitária era estranha e fria, meu âmago se calava como um pássaro morto enquanto tudo o que eu sentia era medo. Eu não estava pronta para olhar as íris que perfuravam minhas retinas naquele instante. Eu tremia. Eu sabia, inclusive, que poderia ter sido evidente o meu tremor, pois que o arrepio brincava em minha pele e se fazia visível em meus braços. À princípio tudo o que fiz foi silêncio, o silêncio parecia durar a eternidade, mas o homem que guardava tão vívido o meu semblante não parecia hesitar, ele não parecia abalado. Decerto sorria detrás da máscara, a maldita máscara… ou seria bendita? Graças a ela a minha feição de transtorno podia se manifestar sem restrições, sem perigos. E naquele instante, com o coração disparado como se eu corresse uma maratona, travei minha respiração enquanto minha pele esquentava como uma febre perigosa.
— Sophia? — aquela voz, agora mais grave do que há dez anos, atravessou o precipício entre nós e espargiu em meu coração, fez com que a pulsação acelerasse num ritmo ainda mais tenebroso. Respirei o mínimo, para não desmaiar. Sentia um amargor vindo da tão clara incapacidade de me comunicar como um ser humano civilizado, custei respondê-lo e ele, graciosamente, elegante como sempre, apenas se fazia espontâneo e tranquilo. — Lembra de mim? — acrescentou, tudo sumiu ao nosso redor e eu apenas o enxergava, vívido, como um ser absorvido pela imensidão de si mesmo; senti uma dor pequena e estortegada, tudo porque minha mudez nos constrangia.
— Ahm… — gemi, ou apenas vocalizei, sem razão aparente, sem motivo, eu estava me esforçando para ser quem eu deveria ser em uma situação inusitada; meu erro, entretanto, foi apreender aquele momento como apenas e tão somente “inusitado”; eu estava afetada, eu estava assustada, não era só um reencontro daqueles em que sorrimos, relembramos e nos despedimos felizes e nostálgicos. Deveria ser, mas, não era para mim. — Claro… — respondi com dificuldade eterna. Ele pareceu mais tranquilo quando o respondi, eu não o notei apreensivo antes, porém, quando o vi mais relaxado, percebi que antes estava tenso. Não era mesmo apenas um reencontro comum, ainda mais pela onda abusiva que corroía meu corpo excitado e transtornado.
— Quanto tempo… Como você está? Conseguiu se formar direitinho? — ele indagava enquanto um frio me envolvia perigoso. Esfreguei meus braços devagar, fechei a porta da geladeira que até aquele momento estivera aberta, porque pouco antes daquela situação horrenda, eu estava apenas escolhendo um sabor de sorvete para adoçar e gelar a noite, quem me diria que o frio viria de outro lugar, numa dança obscura com a febre mais promíscua jamais olvidada... Fiquei de frente ao meu passado, respirei fundo.
— Sim… estou bem… é… no ensino médio sim, mas ainda estou no superior… — Minha resposta, era nítida, estava cheia de insegurança. Era terrível a sensação! — Como... Como você me reconheceu? — Perguntei sem pensar muito a respeito. Ele desviou seu oceano-olhar que ainda era — e como não seria? — tão azul quanto o fim de uma tarde nublada, acinzentado a depender de quem ele está olhando.
— Sinceramente? Eu não faço ideia... Passei por você, seus olhos atentos às geladeiras, tive a impressão de que já tinha visto esses olhos... — Silêncio… Nossos olhos não se desgrudavam naquele momento, mesmo à distância. — Busquei com afinco na memória…. e então Sophia me veio à mente. Resolvi arriscar. — Como eu poderia processar aquela explicação? Eu não poderia, porque seus olhos a mirar meu rosto pálido eram árduos, dominadores, tórridos como o verão de 1999, quando o vi adentrar a sala de aula pela primeira vez… Eu apenas não conseguia entender o porquê de estar tão mais frio a cada segundo, enquanto tudo era calidez, talvez fosse culpa daquele silêncio que fazia morada em meu caos, um pouco mais da música sem ondas sonoras batendo contra minha ansiedade. — Bem, quer tomar um café? Sei que é tarde para isso, mas acho que eles têm chocolate quente aqui também. — Rui estendeu sua mão direita, tocou meu braço esquerdo e o acariciou como se fôssemos íntimos. Eu apenas fiquei estática. — Você está fria… e arrepiada… É bom tomar algo quente.
Fria… arrepiada… Seu toque trouxe algo mais do que isso. Seu toque, mãos quentes, grandes como eram quando tocavam em meu caderno apontando detalhes matemáticos quais eu me esforçava para entender apenas para impressioná-lo. Eu tinha quinze, ele talvez tivesse uns trinta… Era ótimo amá-lo em segredo, meu maior erro foi ter acreditado que a confiança em minhas amizades era baseada em provas concretas de real afeto e bem-querer. Malditas traíras… contaram ao professor que eu o amava… Eu não podia esquecer o quão traumatizante foi aquilo; senti a vergonha de toda a humanidade concentrada dentro de mim. Apesar disso, ainda o amei por um tempo, mesmo já não vendo o seu rosto, já que ele não ficara mais na escola, pois era um professor temporário. Rui Mansur… ele ainda me excitava como antes e… muito mais… porque, afinal, eu já sabia muito bem o que era a excitação e o que poderia ser feito para saná-la, sabedorias que na juventude nunca são bem esclarecidas.
— Eu… não sei… — Respondi com toda a veracidade da minha alma. Eu não sabia se deveria ou não aceitar aquele convite.
— Vamos… não sou mais seu professor de matemática… Não vou te dar uma prova oral sobre raiz e porcentagem — ele sorriu, percebi pelos seus olhos. A prova oral que eu queria era outra, e a máscara não escondia a fascinante expressão de alegria de Rui, por que talvez tenha pensado o mesmo? Não pode ser… lembro de repreender meus pensamentos naquele momento. Sorri de volta, por educação, a tensão existia, mas o cuidado, o carinho que envolvia aquele homem, simplesmente era impossível não ficar à vontade ao lado dele. Caminhamos juntos pelo mercado, passos lentos, só nós dois existíamos ali; seu corpo não estava distante e a cada pronunciar de suas palavras, eu sentia mais e mais desejo.
— Você está… trabalhando em alguma escola da região? — questionei.
— Agora na universidade de USFOR. — Ao ouvi-lo, expressei supresa com sinceridade, mas disfarcei. A USFOR era a maior universidade do país, decerto uma honra para ele poder fazer parte do corpo docente, no entanto, era a mesma Universidade que a minha, pois naquela semana eu havia concretizado minha transferência, uma vez que me mudei para o meu novo apartamento. Mesmo assim, minhas aulas seriam em um prédio completamente diferente, isso me aquietou bem rápido, a sorte de não unirem exatas com humanas. Preferi me abster de imaginar a possibilidade de encontrá-lo outra vez.
— Parabéns! É um grande passo — congratulei e o olhei nos olhos, virando-me sutilmente de lado; pela primeira vez eu busquei o oceano de suas retinas, intencionalmente, eu estava me acostumando com o desconforto pela vergonha de tê-lo tão perto depois de tudo o que vivenciamos naqueles tempos.
— Obrigado, Sophia… — Meu nome em seus lábios me faziam novamente perder o controle; novamente me arrepiei e dessa vez ele com certeza percebeu, olhou para meus braços e depois inclinou suavemente sua cabeça, fechou ligeiramente seus olhos num semicerrar bem sutil. Mesmo assim, mesmo que a cada instante meu anelo por ele ascendesse drasticamente, pouco depois tudo desmoronava como um monte imensurável de lama feita da memória de minha humilhação… Aquele dia… O meu segredo… Aquele era… era meu único segredo… e de repente eu estava nua, sendo julgada no meio de um campo de futebol lotado — era o que eu sentia —; desde então evitei tudo isso, todavia, como eu devia ter previsto, quando se evita demais alguma coisa — com esse esforço exagerado —, essa coisa tende a ressurgir frequentemente para te torturar.
Chegamos ao café. Pedimos bebidas quentes no balcão, sentamo-nos em uma mesa pequena. Não ficamos frente a frente, estávamos pendendo para à esquerda, de forma tênue, já que a mesa possuía três cadeiras..
— Não se assuste — disse Rui ao retirar a sua máscara — maldita pandemia! Eu o vi… perfeitamente… ele estava ainda mais elegante. Fascinante em sua beleza viril. — Como pode ver, me tornei grisalho nesses dez anos e essa expressão facial de velho cansado foi um brinde agregado. — Ele sorri galanteador. E me olha nos lábios e depois nos olhos.
— Você não está com cara de velho… — afirmo sem pensar — Quero dizer… — desvio meu olhar —Não é um problema também estar com cara de velho… — Explico, mas sinto-me confusa, retiro minha máscara devagar e bebo meu chocolate quente e olho os arredores. Não bastasse a incapacidade de socializar, eu ainda estava visceralmente excitada somente pela presente do senhor Mansur.
— Sophia? — Ele me chama. Olho para seu rosto, ele estava concentrado no meu. Logo sua mão direita toca minha perna, ele toca com cuidado e força, eu não esperava, e eu não entendi aquele súbito toque tão quente… Mãos quentes e firmes, mesmo ainda cuidadosas. Eu estava queimando e pelo seu toque em minha perna eu estava em combustão — mesmo ainda morrendo de frio. — Essa sua perna não para de balançar, você não está confortável, não é?
Nem eu mesma percebi que estava assim tão agitada. Rui sem dúvida estava sentindo o meu desejo, porque continuava me olhado fixo, meu nervosismo evidenciava tudo para ele, como uma grande janela aberta. O que eu poderia dizer? O que eu poderia fazer? Era sempre assim, algo o fazia sempre saber o que eu guardava de segredo sobre ele. — Se quiser posso ir embora — ele diz, com a voz mais baixa.
— Não quero… — respondo rápido, como um sopro. Quero pedir para que ele não tire as mãos de mim. — Quero dizer… — hesito — Não precisa ir… só estou um pouco nervosa porque não te vi desde aquele dia… na escola…
— Lembro bem daquele dia… — Rui deixa de tocar minha perna, ela esfria mais do que antes… — Aquelas suas amigas infernizaram a minha vida. — Confessou e bebeu o chocolate logo em seguida. — Elas provavelmente não te contaram o que eu disse a elas, um sermão de meia hora sobre não revelar segredos dos outros, ainda mais dos amigos. Depois eu soube que você estava chorando no intervalo. — Rui respirou fundo e me olhou mais próximo. — Fui atrás de você, mas a Sandra me pegou no meio do caminho para falar sobre as provas… Queria ter te dito que estava tudo bem… Ainda fui surpreendido com o retorno do Gilson, sequer me despedi de você. — Rui se ajustou em sua cadeira, ficou ainda mais perto de mim, eu sabia que provavelmente teria um orgasmo se ele se aproximasse um pouco mais.
— Achei que você tinha ido embora por minha causa… — revelei.
— Jamais… Quero dizer… Não era um problema para mim que uma aluna me amasse, o problema seria eu amá-la de volta — ele disse semissorrindo — Eu não sou o tipo de cara que se apaixona por adolescentes, eu apenas fiquei frustrado com a cara de pau das suas amigas e por isso eu queria te consolar de alguma forma, pelo menos dizendo que estava tudo bem e que eu não tinha achado aquilo ridículo, eu não achava seu amor ridículo.
— Fiquei mesmo com essa impressão — confessei novamente e tomei meu último gole de chocolate. Rui ficou me encarando por alguns momentos.
— Você mudou bastante… — Seus olhos passearam sobre mim… — Mas seu olhar ainda é igual… Doce e gentil... — Sorrio para ele e levanto-me devagar, ele faz o mesmo.
— Eu preciso ir agora — Se eu não fosse embora… eu tinha medo do que poderia acontecer. A forma como falou comigo devagar, o modo como me disse ter um olhar doce e gentil, mordendo sutilmente os lábios, quase imperceptível… Eu não conseguia mais… — Mas… foi ótimo te reencontrar. — Eu falei…. Eu não sabia se de fato tinha sido ótimo. Rui me cumprimentou com um leve abaixar de cabeça, não deixava de me olhar e agora, sem máscara, parecia me causar mais vontade e mais vergonha.
— Foi um prazer te reencontrar. Bom saber que você não me odeia. — Ele brinca. Se inclina um pouco para mim, sorri, fala ainda mais baixo. — Acredite ou não, isso me perseguia bastante.
Isso o perseguia? Por quê? Fiquei sem reação outra vez. Eu quase não respirava, de novo.
— Perseguia? — Repeti como que para assimilar, mas é claro que o Sr Mansur aceitou a indagação.
— Sim… Por empatia e…
— Ah sim… claro… desculpe a pergunta — desviei o olhar, interrompi-o porque sabia que a minha pergunta tinha sido tola, eu me sentia uma criança em busca de migalhas de afeição — Bem, até logo professor. — Rui sorriu.
— Até logo, aluna. — Respondeu para me provocar. Eu apenas sorri enquanto estava enxarcada de desejo por ele.
Não comprei nada naquele dia. Esqueci meu carrinho de compras e apenas não voltei atrás. Eu queria tanto vê-lo de novo que meu desejo era nunca mais encontrá-lo, se é que esse paradoxo é possível. Meu corpo era a manifestação pura do desejo e apenas quando meu coração se acalmou, cerca de duas horas depois, eu consegui relaxar no banho e depois na cama, sentindo a excitação enquanto relembrava do toque quente de Rui e fantasiava como poderia ser o seu corpo, o seu sexo… Qual seria o tamanho, a vultuosidade… quão quente poderia ficar dentro de mim… O quanto poderia preencher a minha boca… Rui estava ainda mais belo agora, mais velho e mais forte… Seu olhar estava mais seguro, mais erótico… Não era aquele olhar de professor cansado… ou eu estava tão apaixonada que apenas enxergava o que eu queria enxergar? Eu não sabia. Esperei ter sonhos com ele naquela noite, mas apaguei rápido e profundo depois de uma intensa e rápida masturbação. Queria os lábios de Rui, faria tudo por isso.