Mórbida Esperança

 

Imagem criada e editada por Sahra Melihssa

 

À Noite, quando as candeias se apagam e, sob sombria imensidão, ergue-se o prazer em minh’alma, ultrapassando a tórrida pele, relembro-me unicamente dele. Criatura inumana e, como tal, restringia-se aos sentimentos e ao instinto; embora me compreendesse tão bem. Sei que me arrisco ao escrever sobre tais obscuras verdades, todavia, corrói-me não ter a quem confessar os indistintos sentimentos que me sufocam. A loucura bate aos umbrais, espreita em cada fresta; ainda assim, eu insisto. Eu insisto no alarde sutil da aldrava desta porta que leva à morte e ao insondável.

Vertido, o sangue, à mórbida cena. Os corpos dilacerados em frações de tempo. Ele, que os senhores gritavam pelo insulto “demônio”, ele tão facilmente poderia me consumir, no entanto, viera em lentidão extrema, logo após matá-los todos, frente a mim, seu hálito com pujante odor de ferro. Não vi seus olhos, porém, por eles, eu era vista; de alguma oculta maneira. Tive meu medo farejado. Suas garras em meu rosto sob mesma lentidão que seus passos, enquanto eu chorava. Implorei, em sussurro, para que ele não ceifasse a minha vida naquela horrenda mansão e ele se afastou, brando. Comportava-se como um homem educado, tinha análoga anatomia humana, movimentava-se quase símil, como um homem, exceto quando rasgava a carne humana. Era uma criatura imensa, com presas ensanguentadas, rosnado alto e grave, pele fosca e negra-cinérea, um tipo de cor jamais imaginada em nenhuma tez.

Rodeando meu corpo frágil, após longo admirar que tanto me intimidava, ele se foi e, ao recompor minha comoção, corri à saída com dificuldade, visto que o traje determinado pelos senhores se assemelhava aos antigos vestidos vitorianos. Demorei a encontrá-la. Eu não sabia o que ocorreria naquela noite, fui ludibriada e tomada como mercadoria, mas hoje eu sei a razão primeva, porventura sobrenatural, própria da criatura que encontrei. A submissão qual me submeteria faria dos homens reais as verdadeiras bestas medonhas e eu era a única mulher naquele lugar e eles eram em vinte homens. Uma leve compreensão alcançara minha consciência acerca daquela mansão assim que abri as portas de entrada; eu estava lá para servi-los, servir aos cadáveres outrora com seus corações pulsantes; eram homens de poder. Mas não eu, eu era mais uma vítima de seus rituais.

Havia névoa por toda a parte, neve e névoa, frio intenso e ventania tétrica. Nunca vi tal clima tão perturbador. Entendi, somente ali, que eu não sabia onde estava, tampouco como havia chegado naquele lugar. Voltei à mansão fechando-lhe os umbrais antes que meus braços congelassem. O silêncio. O silêncio e um leve respirar grave à distância. Era a criatura. E ele se aproximava outra vez. Sob um pavor singular, segui à direção oposta por um corredor qualquer. Cheguei à cozinha, retornei aos quartos, encontrei uma biblioteca. Nesta última, sentei-me n’uma grande poltrona frente a uma pintura à óleo antiga. Descansei até ouvir a criatura outra vez.

Seu sibilar era como um abismo e eu sentia esta profundeza em meu ser. Não somente inumano, a criatura não era sequer animal; decerto vinha d’outro mundo, d’outro plano. Não fugi, embora almejasse; talvez, ponderei, fosse melhor a morte, pois, o que eu faria ali sozinha? Por quanto tempo? Questionava-me tão célere quanto meu coração batia e, assim, sob um impulso mortal, me joguei aos braços do demônio, em pranto súbito, e eu o senti aquecido. “Mata-me! Mata-me que já não sei o que fazer aqui sozinha!” — meus gritos eram estridentes e repletos de angústia. Fui abraçada, então, à minha surpresa, pela criatura. E ali ficamos até meu acalmar. Até meu adormecer.

Com os olhos abertos, serenos, senti-me ser a mais etérea quietude. O meu peito já não estava arfante. A adrenalina enclausurada. “Podes sentir-me?” — sussurrei, e ele emitiu de sua garganta um som grave, mas ameno. Nenhuma palavra. Apenas um tom. Toquei a pele de seu tórax e o toque expandiu-se para seu pescoço, mandíbula, nuca e, quanto mais o tocava, mais sua respiração se elevava. Em certo momento, senti-o envolver seus braços em minha cintura para nos aproximar e, tão logo, passou a acariciar minhas costas e meus cabelos. Ele insistia no cuidado, embora fosse, pelo tamanho e composição, brusco. Tudo, entretanto, deu luz a uma inenarrável vontade e notei-me, em profundez, envolvida; meu corpo pedia por ele, eu estava excitada. E pelo arfar intenso, ele também.

Sei o quão errôneo soa tal relato… eu sei… “Sinta-me” — proferi, então, subi sobre o seu corpo, na mesma poltrona de outrora. As suas mãos, que eram como garras, cortavam meu vestido e eu o olhava em sua face mórbida de criatura infernal. Beijei seu rosto e atritei meus seios, já nus, em seu peito. Senti-o segurar-me intenso e sua língua indiscreta alcançou-me os seios outrora apoiados em seu corpo robusto. Ah… se descrever fosse o mesmo que sentir… Alçado em lascívia, hirto, túrgido como um homem; guiei-o ao caminho que o esperava inundado. Ele compreendia sua vultuosa natureza, penetrou-me tão devagar até minha face lhe confessar os meus limites. E ele os respeitou. Quão fascinante tê-lo na alcova de mim. Seus movimentos advieram com o mesmo cuidado e não demorou para meus gemidos encontrar-lhe os tímpanos e levá-lo quase à bestialidade de sua essência.

Seus urros eram ensurdecedores; sua língua, impetuosa; seu corpo, promíscuo; seu desejo, violento. Ele estava sob seu próprio autocontrole, enquanto eu desejava, vítima de um prazer diabólico, o desvario e a morte. Quis tê-lo todo introduzido, quis sangrar pelo interior e enfim jazer em seus braços; visitar o inferno. Ele, todavia, era certo de seus impulsos e despejou sobre minha carne íntima toda a sua vitalidade carmesim enquanto eu mesma tremia pelo orgasmo que meu corpo nunca presenciara. Eu o amei e o amaria de novo e o amei por dezenas de vezes e nunca me arrependi. Tive-o rígido em meus lábios, tive-o em vigor, lado a lado, dei-lhe meu sangue; supliquei para que marcasse minha pele, ele o fez; supliquei para que penetrasse mais fundo, ele o fez. Adormeci por dezenas de noites em seu colo e o vi ser morto pelos malditos oficiais que me encontraram e me apartaram de meu único amor. A dor de perdê-lo foi cruel… desumana… ele tentou trucidar aqueles malditos, porém, suas armas de fogo foram impiedosas. Tentei impedi-los. Pus-me à frente para ser baleada; nua, e encharcada em devassidão, eu bradei para que parassem.

Abracei-o forte, mesmo caído ao chão. Em seus últimos suspiros jurei amá-lo pela eternidade e sei que ele compreendeu. Os oficiais levaram-me para uma clínica psiquiátrica e por lá fiquei por uma vida. Retornei há poucas semanas para minha casa e, estranhamente, pude senti-lo por perto; parece-me ainda tão vivo, como se sua alma sombria estivesse na espera de um receptáculo que a comportasse para que, então, ele pudesse voltar à vida para me encontrar outra vez. É nesta ínfima possibilidade que me apego cada dia mais.

Sahra Melihssa

Poeta, Escritora e Sonurista, formada em Psicologia Fenomenológica-Existencial e autora dos livros “Sonetos Múrmuros” e “Sete Abismos”. Sahra Melihssa é a Anfitriã do projeto Castelo Drácula e sua literatura é intensa, obscura, sensual e lírica. De estilo clássico, vocábulo ornamental e lapidado, beleza literária lânguida e de essência núrida, a poeta dedica-se à escrita há mais de 20 anos. N’alcova de seu erotismo, explora o frenesi da dor e do prazer, do amor e da melancolia; envolvendo seus leitores em um imersivo, e por vezes sombrio, deleite. A sua arte é o seu pertencente recôndito e, nele, a autora se permite inebriar-se em sua própria, e única, literatura.

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